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O que Kafka e Camus nos ensinam sobre sentirmos solidão

Há um instante na história em que o homem percebe que o mundo já não o escuta. Nenhum deus responde, nenhuma ordem secreta se revela, nenhuma promessa se cumpre. Resta apenas o silêncio, e é dele que nascem Franz Kafka e Albert Camus.

Em tempos distintos, os dois escreveram o mesmo espanto: a sensação de estar só num universo que deixou de fazer sentido.

Kafka vê esse espanto como um labirinto onde a busca nunca chega ao fim. Seus personagens Joseph K. e Gregor Samsa caminham entre portas que não se abrem, tribunais invisíveis e leis que ninguém explica.

Já em Camus, especialmente em O Estrangeiro, o labirinto se desfaz: não há mais corredor nem juiz. Há apenas o sol, a areia e um homem que compreende que tudo é absurdo; e ainda assim, escolhe viver.

Entre o silêncio e a lucidez, Kafka e Camus formam dois rostos de uma mesma solidão: a que nasce da consciência. Se em um o homem se perde tentando compreender, no outro ele encontra alguma liberdade ao aceitar que não há explicação.

A solidão, nesse ponto, deixa de ser castigo e se transforma em espelho; o lugar onde o homem moderno, enfim, se reconhece.

O homem diante do silêncio

O século XX começa com uma perda que não se anuncia em jornais: o desaparecimento do sentido. Deus se cala, o progresso não consola e a linguagem, que antes parecia ordenar o mundo, passa a tropeçar nas próprias palavras. Kafka e Camus escrevem nesse intervalo, quando o homem percebe que está só e que o mundo, ao redor, não responde mais.

Em Kafka, o silêncio tem forma de tribunal. Em Camus, de sol. Em ambos, o mesmo vazio: o homem fala, mas o universo não devolve eco. É o que Joseph K. sente ao tentar compreender sua acusação, e o que Meursault vive ao olhar o mar após o crime. Nenhum deles entende o que o cerca; apenas ouvem o ruído do próprio pensamento, que se torna a única voz possível.

A solidão, nesses autores, é muito mais que o isolamento físico; é a consciência do desamparo. Quando o mundo perde sentido, resta o olhar. Kafka o transforma em angústia; Camus, em lucidez. Ambos descobrem que o silêncio não é uma ausência, mas uma linguagem; a mais humana de todas.

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Kafka e a espera que nunca termina

Ninguém espera tanto quanto um personagem de Kafka. Joseph K. tenta entender de que crime é acusado; K., o agrimensor, busca entrar num castelo que nunca se deixa alcançar. Ambos caminham sem fim, e o movimento, em vez de aproximá-los do sentido, apenas os revela como estrangeiros em seu próprio mundo.

A solidão kafkiana é feita de portas entreabertas e respostas adiadas. O homem quer compreender, mas cada gesto o lança num novo labirinto. A linguagem, que deveria esclarecer, o confunde. A lei, que deveria proteger, o acusa. O trabalho, que deveria dar identidade, o despersonaliza. Nesse universo, o isolamento é estrutura. O próprio desejo de comunicação já nasce condenado.

Em Kafka, a espera é o modo como o absurdo se organiza. O tempo se alonga até perder forma, e a esperança, que em outros autores seria redenção, se torna a mais cruel das armadilhas. No fim, a solidão de seus personagens é uma espécie de fidelidade ao enigma: continuar buscando, mesmo quando se sabe que não há resposta.

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Camus e a lucidez de Meursault

Se Kafka escreve o homem perdido em busca de um sentido que se oculta, Camus descreve o instante em que o homem aceita que esse sentido não existe.

Em O Estrangeiro, Meursault não tenta justificar nada; nem a morte da mãe, nem o crime, nem a própria vida. Ele simplesmente observa, como se o mundo fosse uma paisagem sem centro. “Senti que fora feliz, e que ainda era”, diz ele, pouco antes de ser executado. A frase, de tão simples, soa quase herética.

A solidão de Meursault é radical porque é livre de explicação. Ele não se revolta, não busca um tribunal metafísico, não inventa um sentido para suportar o vazio. Sua lucidez está em não mentir, nem para si, nem para o mundo. Ao reconhecer o absurdo, ele o desarma. O silêncio que o cerca já não é condenação, mas clareza.

Camus vê, nesse gesto, uma forma de dignidade. Enquanto os personagens de Kafka esperam, Meursault permanece. Ele aceita o que há — o calor, o sol, a iminência da morte — e nisso encontra uma serenidade quase física. O absurdo, enfim, deixa de ser peso e se torna medida: a medida exata do que o homem pode suportar.

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Entre o absurdo e a liberdade

O encontro entre Kafka e Camus acontece nesse ponto silencioso em que o homem reconhece o absurdo e, mesmo assim, escolhe continuar. É o instante em que a solidão se transforma em consciência, não uma fuga do mundo, mas um modo mais lúcido de habitá-lo. Ambos os autores compreendem que a liberdade nasce da clareza de que nenhuma resposta virá.

Kafka pressente essa liberdade em seus próprios paradoxos. Joseph K., mesmo diante da morte, mantém um olhar quase sereno: o reconhecimento de que, no fim, só resta ser fiel a si mesmo. Camus leva essa intuição adiante; em O Estrangeiro, Meursault abraça o absurdo como quem aceita o calor do sol sobre o rosto. Ele sabe que nada o espera, e justamente por isso pode viver sem máscara.

A solidão, então, deixa de ser o vazio que destrói e se torna o espaço onde a vida se afirma. É o terreno da lucidez, o instante em que o homem, sem apoio algum, descobre que continuar é um ato de liberdade. Em vez de buscar sentido, ele passa a criá-lo, ainda que por um único dia, um único gesto, um único pensamento verdadeiro.

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O sentido que permanece

Kafka e Camus olham o mesmo abismo, mas o atravessam de modos diferentes. Em Kafka, a solidão é a forma visível da busca: o homem quer compreender, mas o mundo permanece indecifrável. Em Camus, a solidão é o ponto de partida da aceitação: o homem sabe que não há explicação, e ainda assim escolhe viver. O primeiro revela o desamparo; o segundo, a coragem de sustentá-lo.

Entre o labirinto e o deserto, há uma continuidade secreta: ambos fazem da consciência o último abrigo. A lucidez se torna, então, a resposta possível. Como escreve Camus em O Mito de Sísifo,

“A própria luta em direção às alturas é suficiente para preencher um coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.”

O homem de Kafka talvez nunca sorrisse, mas ao empurrar sua pedra, Sísifo reencontra o mesmo gesto de resistência: o de continuar, apesar de tudo. Nesse movimento silencioso, a solidão deixa de ser o oposto da vida e passa a ser sua medida. É ali, no espaço entre o absurdo e a liberdade, que o homem moderno aprende a permanecer.

Capa do livro O Estrangeiro, de Albert Camus, edição em português

O Estrangeiro, de Albert Camus

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